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A surpreendente e inusitada modulação dos efeitos da decisão do STF para 2022 no julgamento do RE nº 1.287.019 – inconstitucionalidade da cobrança do diferencial de alíquota do ICMS para consumidores finais.
Não é novidade que o Supremo Tribunal Federal vem modulando os efeitos de suas decisões nos julgamentos de causas de grande repercussão social e econômica. Modular os efeitos da decisão significa restringir sua eficácia a partir de um marco temporal específico. Entretanto, em fevereiro desse ano pandêmico, o STF conseguiu surpreender os especialistas ao modular, apenas para 2022, os efeitos da decisão que declarou a inconstitucionalidade da cobrança do diferencial de alíquotas de ICMS nas aquisições de mercadorias vindas de outros Estados destinadas aos consumidores finais não contribuintes de ICMS sem a edição de lei complementar para disciplinar o mecanismo de compensação.
No julgamento do RE nº 1287.019, objeto da análise do presente artigo, o STF fixou a seguinte tese em repercussão geral: “A cobrança do diferencial de alíquota alusiva ao ICMS, conforme introduzido pela emenda EC 87/2015, pressupõe a edição de lei complementar veiculando normas gerais“.
A modulação mais comumente realizada pelo Supremo é aquela que determina que a decisão passará a valer após seu trânsito em julgado, entretanto, no caso em comento o STF determinou que a aplicação da lei só deixaria de ocorrer a partir de janeiro de 2022, dando tempo mais do que suficiente para que o fisco possa editar a lei complementar, prosseguindo com a cobrança reconhecidamente inconstitucional, como se nada tivesse ocorrido.
Na prática, caso o Fisco edite a Lei Complementar até 02/10/2021 (em observância ao princípio da anterioridade nonagesimal) – apontada como necessária para validar a cobrança, até 31 de – o reconhecimento da inconstitucionalidade não trará qualquer efeito para os contribuintes que não ajuizaram a ação.
Outrossim, a modulação dos efeitos das decisões pelo STF é autorizada pelo art. 27 da lei nº 9868/99 que prevê tal possibilidade quando o Supremo declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo desde que presente os seguintes requisitos: i) esteja diante do risco à segurança jurídica ou em defesa de excepcional interesse social e ii) mediante maioria de dois terços dos votos de seus membros.
Entretanto, ao justificar a modulação os efeitos no RE nº 1.287.019, o STF afirmou que “a ausência de modulação dos efeitos da decisão fará com que os estados e o Distrito Federal experimentem situação inquestionavelmente pior do que aquela na qual se encontravam antes da emenda constitucional”. Nesse ponto não nos parece que a perda de arrecadação seja caso para proteção da segurança jurídica ou de excepcional interesse social consoante prescreve o art. 27 da lei nº 9.868/99.
Isso porque o interesse social e coletivo a ser defendido é o do consumidor final que já sofre com a altíssima carga tributária incidente sobre os produtos que consome, sendo ele de fato o hipossuficiente na relação jurídica tributária e que merece ter a segurança jurídica e certeza de seus direitos protegida.
Frise-se: os impostos sobre o consumo são uns dos grandes responsáveis pela regressividade da carga tributária brasileira ao agravar mais os que podem menos.
O Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição Federal, deveria de imediato afastar do ordenamento jurídico leis que violem a carta magna, jamais flexibilizando ou limitando no tempo a tolerância de sua violação sob justificativas de redução arrecadatória. Afinal, quem não fez o dever de casa ao deixar de editar lei complementar essencial para autorizar a cobrança do diferencial de alíquota de ICMS dos consumidores finais não contribuintes do ICMS foi o próprio ente tributante.
(*) Roberta Maia Broder.
(Advogada Tributarista, sócia do Nogueira Reis Advogados, Mestranda em Direito Tributário Profissional pela FGV e especialista em negociação pelo Program on Negotiation da Harvard Law School.)